quinta-feira, 16 de julho de 2009

Flores Alaranjadas

Eu queria contar uma história sobre como os homens são bons, sinceros e honestos. Mas o meu estado de espírito não me permite escrever tanta mentira. Vou falar sobre o egoísmo.

Ela passava todos os dias por aquela rua. Andava com cuidado pra não pisar na linha da calçada, olhando para as flores alaranjadas que cresciam nos terrenos baldios. Havia vários terrenos sem casas, o lugar era desabitado. Seguindo sua rotina, ela ia.

Tinha um priminho, de quem cuidava todas as tardes, para que sua tia pudesse encontrar as amigas. Foi uma gravidez indesejada, e ela, com toda a sua bondade e simpatia, se oferecera para cuidar da criança, afim de que esta não fosse maltratada por uma mãe sem consciência de seu papel.

Uma tarde, enquanto ela fazia o caminho observando as flores alaranjadas, sentindo o cheiro frio e úmido da tempestade que se aproximava, encontrou uma velha amiga da escola, que não via há muitos anos. Cordial, como era, cumprimentou a quase desconhecida, que havia pintado o cabelo e usava roupas que chamavam a atenção dos homens. A amiga, Bruna, queria ter fingido não vê-la, mas não conseguiu. Disse “oi” com um sorriso amarelo e perguntou como estavam as coisas, esperando um “tudo bem” como resposta para que pudesse seguir, apressada, rumo aos seus afazeres do dia. Ao que ela respondeu com um “deixe me ver... a gente se viu pela última vez em mil novecentos e...” e quis retomar a amizade do ponto em que parou. Ela se perguntava por que será que Bruna não tinha ligado, porque não tinham mais se encontrado... Eram ótimas amigas, trocavam confidências, falavam dos meninos de quem gostavam, defendiam-se mutuamente, enfim, haviam vivido juntas o período conturbado da adolescência.

Bruna só conseguia pensar em meios de se ver livre daquela chata que só queria atrapalhar sua vida. Não estava ouvindo as novidades que a amiga, entusiasmada, contava. Não queria saber que sua mãe havia morrido, que sua cachorra dera cria há uns dias, que os filhotes eram lindos, se ela queria um. Passava-lhe pela cabeça apenas a imagem de um tempo que se foi, e que não fazia falta. Não gostava de lembrar-se das pessoas com quem convivera. Tinha muitas dificuldades em lidar com o passado e com quem lá ficou. Seus relacionamentos nunca foram duradouros, talvez por impaciência, talvez por egocentrismo. Não era boa em ouvir os problemas alheios, em dar conselhos, em enxugar lágrimas. Não sabia o que fazer nessas situações. Não queria saber dos problemas dos outros, porque não saberia como resolvê-los.

Bruna se cobrava demais, por isso não deixava que ninguém se aproximasse. Ela não saberia como ser amiga. Ela só conversava com os outros para aliviar a dor da solidão. Quando não precisava mais, descartava-os como quem joga um pacote vazio de chips que já matou sua fome. Todos a viam como uma pessoa seletiva, que só conversava com quem tivesse “o seu nível intelectual”, que não perdia tempo com quem não fosse lhe dar algum lucro, com o que não lhe fosse conveniente gastar suas horas. Talvez ela fosse realmente assim. Talvez ela fosse sozinha por opção, vaidade. Talvez ela não conseguisse ser diferente.

Ela continuava contando sua história, que seu pai havia se casado com outra mulher, que seu irmão ficara muito abalado, que ele precisava de muita atenção nesse momento, que ela precisava ajudar, que ela estava cansada. Bruna ouvia, mas não escutava. Não estava atenta. Não conseguia entender por que aquela menina confiava tanto nela, por que achava que ela seria sua amiga. No fundo, não achava que ela seria boa o suficiente. Não achava que com ela poderia discutir os filmes aos quais assistia, os livros que lia. Fora criada num ambiente pseudo-intelectual, em que todos se cobravam muito, mas ninguém sabia de nada. Achava que um assunto só podia existir se tivesse uma base filosófica por trás, uma frase em latim, um pensador francês. Não estava interessada no que a quase-estranha contava, porque não achava que sua vida pudesse vir a ser interessante. Não achava que ela teria experiências para compartilhar, não imaginava o quanto aquela menininha conhecia, não imaginava o tamanho de sua sabedoria.

Subitamente, ela se lembrou da hora. Deu um grito e Bruna saiu de seus devaneios. Disse que precisava ir, estava atrasada, tinha que cuidar de seu primo e convidou Bruna a ir com ela. Claro que a “intelectual” não gastaria seu tempo indo cuidar de um bebezinho que não tinha nada a oferecer. Mas ela puxou Bruna pela mão e a levou, porque o temporal se aproximava e não havia outra opção senão correr para a casa da tia, que estava próxima. Tinha sede de lhe contar todas as suas aventuras, tudo que lhe havia acontecido naquele tempo em que não se viram.

Bruna estava desesperada. Nunca tinha passado por uma situação tão embaraçosa. Quando chegou à casa da tia daquela menina que lhe havia obrigado a fazer o que jamais faria, viu que havia várias velhinhas andando com o auxílio de bengalas e corrimãos espalhados pelas paredes. O bebê, abandonado pela mãe, que saíra sem esperar a “babá”, estava aos prantos, com fome. A mãe não lhe amamentava, ele dependia de quem estivesse passando por lá. Ela prontamente pegou a criança no colo, que parou de chorar ao sentir o carinho e a presença de alguém. Deu-lhe a mamadeira e ela dormiu. Foi então cuidar das velhinhas, que tricotavam e conversavam alto, para poderem se ouvir. Quando ela chegou, todas pararam e voltaram-se para ela, que começou a contar histórias, falar das lições que aprendera com os livros, filmes, vida e pessoas. Todas prestavam muita atenção, era muito valioso o que a menina dizia. Ela tinha sido muito castigada e aprendera cedo demais como é a dor que só os mais fortes suportam. Todas as tardes, contava uma história.

Terminada a conversa do dia, foi à cozinha, fez bolinhos de chuva. Conversava com Bruna o tempo todo, mas esta estava perplexa demais pra ouvir qualquer coisa. Ficava olhando tudo em volta, como se fizesse parte de outro planeta. Perguntou a ela, então, por que ela fazia tudo isso. Por que caminhava por horas ao sol a pino, por lugares inabitados e perigosos, para ajudar um bando de velhas que podiam preparar sua própria comida e um bebê que tinha mãe, e ela que cuidasse dele. Ao que ela prontamente respondeu: venho aqui pra preencher minha alma do vazio que sinto por me amar demais.

Bruna percebeu que a amiga não discutia filmes e livros não porque não tinha conhecimento, mas sim porque usava de sua sabedoria com quem precisava ouvir suas palavras, com quem encontrava nelas alento. Seria capaz de falar horas sobre Sócrates e seu autoconhecimento, mas preferia a prática à teoria. Preferia fazer e não apenas demonstrar. Preferia não impressionar com palavras, porque isso não lhe traria benefício algum. Quem se impressiona com palavras, apenas, não imagina o tamanho de sua pequenez. Quem acha que o conhecimento serve para ser exibido, não sabe como se utilizar dele. Não sabe ser um grande ser humano. Ilude-se com quem fala frases prontas e não sabe o valor da experiência.

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