sexta-feira, 28 de agosto de 2009

O Medo do Espelho

Carla levantou-se abruptamente, pôs os pés descalços no chão frio, não procurou os chinelos. Tateou, no escuro, a escrivaninha, tentando encontrar rapidamente o abajur roxo que ganhou de aniversário mês passado. Esbarrava em todos os porta-retratos, enfeites e anjinhos que havia por ali, tamanha a pressa, tamanha a busca pela luz. Encontrou, finalmente, o botão. Apertou, esperou. A luz veio.
Ainda descalça, caminhou até a parede. O relógio, num tom melancólico, fazia seu tique-taque habitual. O tempo era medido preguiçosamente. A menina fixou seu olhar no ponteiro dos segundos, ele tinha tanta pressa. Os outros estavam parados, era ele que os levava, empurrava de um minuto a outro, de uma hora a outra. No meio dessa confusão de empurra-empurra, Carla lembrou-se de procurar saber que horas eram.
O relógio marcava três e meia da manhã. Ou seria da tarde? Ela já não sabia quanto tempo havia passado desde que se trancara naquele quarto. Sua cama era a única companhia há dias. A cama e o teto, como se fossem um par de amigos, uma que a segura, não a deixando cair, enquanto o outro serve somente para ser observado. Olhar para ele significava refletir, sozinha, pois ele não lhe dizia nada. Ele lhe permitia abrir a mente e deixar vagar por lá quaisquer pensamentos que estivessem de passagem. O teto dava-lhe a visão da imensidão, do infinito, do concreto e, ao mesmo tempo, era tão abstrato...
Julgou, pelo frio que sentia na pele, que devia ser madrugada. Ela sequer pensou em abrir as cortinas, a janela que não deixa passar a luz, nada daquilo importava. Na verdade, Carla nem queria saber se era dia ou noite, não queria ver o sol, não queria ver seu rosto no espelho. Lembrando-se disso, apagou novamente a luz fosca do abajur, com medo de se deparar com um espelho. Tocando no interruptor, lembrou-se de quando a mão de Fábio havia se juntado à dela para apagar aquela luz. Daquela vez, a luz apagada não significava solidão. Daquela vez foi um abraço, uma noite intensa, os olhos fechados que não precisavam estar abertos para enxergar, já que os outros sentidos se ocupavam em dar todos os sinais necessários.
Mas, agora, ela apaga a luz e já não há ninguém. O medo de se encarar impedia que ela acendesse o abajur, mas, mesmo assim, ela ainda se enxergava. No escuro, seus gritos abafados eram ouvidos por ninguém além dela mesma. Ela tinha medo de se ver, porque seu olhar já não seria o mesmo. Ela temia o que veria através de sua retina. Temia que o olhar revelasse o que ela não aceitava, não queria que tivesse acontecido.
O que a alma dela refletiria seria uma menina que virou mulher. Aquela que se decepcionou e aprendeu da pior forma possível que o universo nem sempre foi tão bom quanto o colo de sua mãe, e nunca voltará a ser.
O escuro a protegia daquela traição, daquela e de tantas outras. Podia proteger-lhe da saudade, da falta que nem deveria ser sentida, dos sussurros que jamais seriam ouvidos novamente, de todas as mentiras ditas, de todas as em que ela acreditou. Ela não queria se olhar, para não se julgar. Percebia que a inocência se esvaia com o passar dos segundos, dando lugar a uma alma febril, inconstante, que não entendia toda aquela incoerência. Ela queria fechar os olhos e entender. Mas não podia entender. Não havia explicação.
O melhor a fazer seria fechar-se em si mesma, até que se formasse uma cicatriz. Mas, quando cicatrizar, será que o olhar inocente voltará? Ou será que ele dará lugar a um ceticismo de autodefesa, carregará consigo uma marca e fará com que ela passe a acreditar em tudo, ao mesmo tempo em que duvida?

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