domingo, 22 de novembro de 2009

Caixinha

Procurei na caixinha de lembranças uma forma de me encontrar. A luz da lua entrava por uma fresta fina da cortina, que eu não gosto de fechar toda – a isso, dou o nome de possibilidade. Resolvi me levantar porque minha cabeça não encontrava uma posição confortável no travesseiro. O problema não era no travesseiro. O problema era que ela não queria se desligar. Sentada na cama, uma camisola leve me cobrindo e eu recostada na parede, sentindo o frio que vinha dela. A madrugada chegando e meu corpo, cansado, não queria dormir. Confusões mentais me deixavam agitada e eu podia me virar para todos os lados, mas não encontraria respostas. Sentada estava, então, com a caixinha de memórias no colo. Ao lado, o violão surrado, cansado de me afagar com o seu som, me espiava mudo. O frio que percorria minha espinha era insistente, nem sei mais se vinha da parede ou de dentro de mim. Era doce o meu reflexo no espelho. Mas não me refletia. Era um rosto apático, mas calmo. Era uma alma leve. Com meus pés descalços, caminhei até a minha imagem. Toquei. Mas foi um toque sem sentido, porque eu não me senti. Era mais uma superfície fria tentando me roubar de mim.

Olhei-me nos olhos, já que há muito não olhava nos olhos de ninguém. Não havia brilho ali, parecia que ele tinha sido roubado pelas tardes que ficaram vazias depois dessa ausência que me foi imposta. As tardes costumavam ter brilho. Meu olhar caiu até se perder dentro de mim, dos meus sentidos, dos pensamentos que não se deixavam esvaziar. Voltei a passos lentos até a cama, peguei o lençol que eu negligentemente havia deixado cair, porque simplesmente não me importava o calor que ele podia me trazer. Seria um calor irreal, que não me aqueceria. O calor de que eu precisava estava além do que algo material poderia oferecer...


De volta à caixinha de memórias, uma flor seca. Foi colhida entre sorrisos e abraços, entregue com uma jura eterna de amor, colocada nos meus cabelos com tanto carinho e ternura que seria um crime retirá-la de lá. Mas o tempo retirou e se encarregou de arrancar junto sua cor rosada, transformando-a num amarelado morto, meio bege, acinzentado. Cinza é a cor do estático. Mordi meus lábios numa forma de conter as lágrimas. Com as mãos pressionei minha boca, para que não se abrisse num grito infundado: era madrugada. E era esse o único motivo para que eu contivesse essa vontade imensa de jogar pra fora o que já não me cabia. Contentei-me em calar o berro, porque não faria a menor diferença... Já acumulei tanta coisa que explodir é apenas uma conseqüência – inútil – de toda essa dor. É inútil porque não bastaria uma explosão só. Mesmo que eu me partisse em mil pedaços, cada um ainda passaria um bom tempo sangrando.

Na caixinha de memórias tinha uma foto rasgada no meio do ódio. Colada com durex. Tornei a rasgá-la. Infelizmente, rasgar as fotos não muda o passado. Se eu pudesse simplesmente excluir aquela pessoa de um momento feliz... Que o momento durasse, mas que eu pudesse expulsar sua presença, tão torpe era ela. Não pude alterar o passado, sobrou-me apenas uma foto rasgada, com todas as correntes invisíveis que ficaram gravadas nela; todos os tons de azul do céu que anunciava um banho de chuva; com o romantismo de dividir um guarda-chuva e se molhar do mesmo jeito; com a lagoa ao fundo e os risos que ela ouviu – risos que, agora, eram mudos. Com a presença morta de alguém já ausente.


Na caixinha que guarda tantas recordações, eu procurava apenas um motivo que justificasse tanto tempo. Sinto que perdi os motivos. Sinto que nunca soube ao certo guardar aquilo que era duradouro. Aquilo que continha o segredo de fazer durar. Sinto que me enganei demais, que via apesar de não querer ver, que apreciava a entrega, mas será que a entrega é eternamente verdadeira?

Acho melhor colar de novo a foto, porque nela, tudo aquilo era verdade. Era a minha verdade, ao menos. Vou fechar a caixa, mas não sem antes pegar de volta a minha felicidade que estava presa lá dentro. Se hoje eu vejo que nada valeu a pena, vou guardar só a alegria sincera. Vou pegar de volta a minha essência, aquilo que eu era antes de me envolver em mentiras erradas. Eu sei que aquela menina ainda está ali, e ela é minha, só minha. Pertencem a mim aqueles sorrisos e não me importam os motivos, porque eu vou inventar novos. Que fiquem os pedaços rasgados de passado pelo chão: estes não me interessam mais. Se os antigos conceitos só se prestam a arrependimentos, ainda há tempo para alterá-los. Minha vida é um ir e vir de opiniões. Trocas de opiniões. Passado e presente que se cruzam para construir da melhor forma possível as hipóteses de futuro.


Só quero voltar a me reconhecer no espelho.

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