terça-feira, 27 de outubro de 2009

Farpas

Sentada no sofá, o fichário de um lado, o copo de coca do outro, nas mãos o Vade Mecum. Estudava Direito Empresarial, quando cheguei a uma página do código que estava cortadinha, em cima, no meio. Um centímetro. Foi o suficiente. Comecei a me lembrar...


Era início do ano, ele estava de férias ainda, mas eu não. Eu estava deitada num colchão na sala, junto com ele, com dor no corpo, vendo TV. E era assim. Costumávamos passar a tarde ali, absortos na nossa própria insignificância. Como todas as tardes, abraçados, conversando sobre nada. Não posso dizer que era ruim. Não posso negar que o amei, principalmente nesses momentos de pura doação.

Já era quase hora de ele ir embora, era cedo, mas ele tinha que ir... Era tudo tão difícil naquele tempo. Tocou o interfone, chegou o código. Ele me pediu pra ter calma, mas fui logo pegando a faca e abrindo a caixa... Mas a faca acabou pegando no código e aí está a explicação: cortou um centímetro de uma página lá no meio. Oito meses depois, eis aí a página cortada fazendo com que se passe um filme na minha cabeça... Um filme com detalhes, cheiros e cores. Algo que está no passado e não precisa emergir de lá... Posso reviver esses momentos sozinha, deitada naquele mesmo sofá onde tantos momentos passei com ele, e fica melhor assim. Meus olhos miravam o longe, longe demais. Chacoalhei a cabeça, fechei os olhos, mudei o pensamento. Voltei a me concentrar nos artigos... Decidi que era duro demais, então peguei uma barra de chocolate, dizem que alegra. Não me alegrei. Comi compulsivamente enquanto tentava aprender alguma coisa, mas minha mente não sossegava, não me deixava em paz, não me permitia tirar esses pensamentos daqui... A serotonina não surtiu efeito, a paz não voltou, e aqui estou eu escrevendo algo que jamais pensei que seria capaz de escrever. Eu nunca havia me permitido sentir saudades. Eu nunca vou admitir que essas lembranças, que não me doem, não me trazem arrependimentos, não me fazem chorar, são como farpas que eu tirei todas de uma vez do peito, e, de vez em quando, a ferida sangra.

Não me escorre lágrima nenhuma, como deveria acontecer. São só “imagens da minha história”. História é passado, o que já foi, o que não volta. Não quero que volte, só quero ter a calma e a sabedoria para simplesmente me lembrar, e não sofrer com isso. Ainda vai chegar o dia em que conseguirei passar por aqueles caminhos sem que meu coração fique pequeno, sem que meus olhos vejam o que já não está lá, sem que minhas mãos queiram segurar mãos que já não me pertencem, sem que a brisa me faça lembrar que o tempo passa rápido demais, que há sentimentos efêmeros, que pessoas vão e vêm e poucas são as que ficam. Preciso apenas saber que, se aconteceu, valeu a pena.


Um comentário:

  1. Dps de um tempinho sem passar por aki, Voltei !! rsrs
    Sab q adoro seus textos né...
    E para variar me identifiquei um pouco... Essas lembranças sempre acabam nos invadindo e é dificil expulsa-las na hr.. rs
    Mas isso é bom, como vc disse, significa algo que valeu a pena... ;)

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