terça-feira, 8 de dezembro de 2009

Ana (eu), por FY.

Não existe, para Ana, o “estou feliz”. Porque ela despreza ilusões.


... Não havia feito novos amigos, nem pretendia fazê-los. Geralmente parece uma pessoa chata para aqueles que não a conhecem, e até para os que sim. Distante, sempre desligada dos grupos, pouco comunicativa com quem não tem intimidade. Mas capaz de conversar por horas a fio com os poucos amigos e de dançar noites inteiras numa boate.
... Tudo o que desejava era voltar para casa e tentar esquecer o que se passou. Assim é Ana, sofre por antecipação. Acredita demais nas suas conclusões precipitadas e leva tudo muito a sério.
... Ana é assim, depois que o amor passa, ela costuma achar ridículo aquele que amou.
... A geração de Ana é pós-sutiã-queimado, não sabe se defende, ou se quer ganhar jóias. Ficou entre o “Avante, patota” e um cartão com rosas vermelhas. O que na verdade Ana sempre quis é descansar. De certa forma, ela se sente como se houvesse participado de mil passeatas e agora quisesse apenas ser bem tratada, porém, sem abandonar os direitos conquistados. Mas se for preciso escolher entre uma carreira e um casamento, Ana não ficará com nenhum dos dois. E para disfarçar sua total incapacidade para ambas as coisas, se dedica a uma vida universitária. Após graduar-se, Ana irá fazer mestrado, depois doutorado e depois... Depois não consegue enxergar.
... Ana não suporta situações constrangedoras e receia sempre que sua agressividade a leve a tomar atitudes extremas nesses momentos.
... Mas ninguém congela um instante na memória tempo o suficiente para compreendê-lo, de fato. E o fato é que, brincando, Ana avisou a Jaime que não pretendia mais se cansar por nenhum amor. Seus esforços nunca seriam grandes em função do sentimento, pois se acostumara a esquecer aquilo que amava, caso fosse muito custoso se lembrar.
... Desde pequena se dizia escritora. Sabe-se lá de onde tirou esta idéia, mas antes mesmo de aprender a escrever, quando perguntavam a ela sobre os planos do futuro, Ana respondia: poetisa. Com a chegada da puberdade, notou que falar poetisa era cafona e diminuía a grandeza da ação. Passou a se dizer poeta. E escreveu belos poemas até o fim da adolescência. Versos que jorravam toda a sua tristeza. Gastou grande parte desses anos falando em morte, Carontes, Inferno e derivados. São indiscutivelmente bons, estes poemas. Mas nada que qualquer adolescente na situação adequada não pudesse escrever. Depois que amadureceu e decidiu não mais se matar, foi-se embora a inspiração. Deixava, então, de ser uma sofredora diletante para tornar-se uma adulta.
Sendo boa para a arte do ócio, aproveitando com sabedoria o hábito de não fazer nada, Ana sempre gostou de ficar horas deitada, pensando. Este exercício resultou em vários cadernos com anotações. Textos sobre assuntos diversos, que em algum momento deveriam se transformar em livros de ensaios, partes de romances ou qualquer outra obra, enfim, fundada. Mas sempre havia um desvio daquilo que pensava para aquilo que acabava indo para o papel. Ela domina com primor a língua portuguesa, conhece suficientemente bem os estilos literários, mas não consegue ser tão boa na escrita quanto o é nas idéias.
... No caso de Ana, conforme os anos vão passando, tudo o que fez, aos seus olhos, parece ridículo. Quando se lembra das cartas de amor que já escreveu, tem vontade de se jogar do mais alto prédio da cidade. Dos ataques de ciúme, ela comprime a cabeça com as mãos, tentando massacrá-la. Odeia lavar louça, pois este é o momento das piores lembranças. Costuma uivar para tampar a própria memória. Assim como quando se lembra das passagens tristes, aperta um gatilho imaginário no meio da testa.
... Jaime compreendia que Ana não tinha os seus sentimentos em ordem, ao contrário da maioria das pessoas que ele conhecia. Ela é diferente. Ele sabia disso. Entendia seus temores e que ela faria de tudo para se defender dos sofrimentos de um abandono.
... Ela percebeu que seu coração estava endurecendo e, com medo de perder Jaime, passou a tratá-lo como um rei. (...) “é compreensível que, com o tempo, as pessoas deixem de me amar. Eu as afugento. Acho que, primeiro, eu é que não gosto mais delas, e faço essas coisas ruins, grosseiras. Sou uma chata. Perco as pessoas porque quero (...)”.
... Estava chorando por vários motivos e, caso tivesse que dizer um, diria que chorava pela dor da solidão. Como outras vezes, estava acompanhada e sozinha. Prefere estar somente sozinha, pois a solidão ao lado de outra pessoa é, para Ana, mais dolorosa. Seu choro era uma tormenta de lágrimas por tudo aquilo que sempre viveu. Sua tristeza não era só pelo livro, ou por Jaime. O que estava acontecendo com ela era resultado de muitas outras coisas. Era por causa de seu pai, da sua mãe, por causa dos seus sonhos, que escorriam pelos seus dedos feito água. Seus sonhos perdidos, sua falta de esperança, sua falta de fé. Chorava, também, por seu coração, que mais uma vez tornava-se frio, inabitado. Um aposento úmido, vazio, que expulsa qualquer um que ali tente ficar. (...) A caminho da faculdade, Ana deixou de se sentir mal e passou a imaginar a liberdade que seria não ter mais nenhum amor para se preocupar. A manutenção das relações é delicada, requer boa vontade e cuidado. Qualquer casamento está sempre a um passo de entrar em declínio, é necessário um senso de equilíbrio digno de malabaristas. Um tropeção em falso e o amor cai corda bamba abaixo. São palavras que devem ser pensadas, pesadas, medidas. Tratar o outro como uma pilha de cristais finos. Pois o ser humano é um amontoado de traumas. E cada um desses traumas merece atenção e tato, quase um tratamento especial. Daí se faz a intimidade máxima: um conhece os problemas emocionais do outro, muito mais do que suas mães ou os seus analistas jamais conheceram. É, no final das contas, essa sabedoria que sustenta os alicerces de um casamento. Mas mantê-los é tão cansativo que, às vezes, os casais duvidam se aquilo vale a pena. Se não seria melhor viver sozinho, do que ter que estar atento a tudo, o tempo todo. Estar ligado às variações de humor do outro, às faltas de interesse físico, ao desânimo com a própria higiene. Estar acompanhado é um trabalho árduo, disfarçado de aconchego.


A beleza de não esquecer é o instante em que se acredita nisso.


Fernanda Young – Vergonha dos pés.

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